Poemas do Livro Beirais

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Poemas do Livro Beirais

Ausência (*)


 


Abraça-me


como o brilho ao cristal


que guarda dos lábios


                               as marcas


a saliva ainda em ebulição.


 


Abraça-me


como órfão ao destino


o beco ao fugitivo


ue desprovido de perspecivas


                                 admite o precipício.


 


Compartilharemos


do barco à deriva as velas


qual andejo com o nada


observadores atentos


                              horas e sentinela.


 


Abraça-me infinda madrugada


como um pai que ao filho espera.


                              * Poema vencedor do Prêmio Ribeirão Preto de Literatura.


 


                                          


Suicida


 


Reinvento pegadas 


sobre a areia movediça


com a sutileza do paquiderme


na corda bamba da vida.


 


Ritmo


 


Seta enviesada


contornando velas e barcos


o sol anestesia teiús


e trespassa do tempo as couraças.


 


Embalando a sesta diária


de preguiçosos e rotundos bagres


o canto intuitivo das cigarras


ocultas nas barras da tarde.


 


E se a queda absurda das águas


transmuta rumor em presságio


a noite silencia e devolve


à vida o seu ritmo estável.


 


Repouso


 


Quando o lusco-fusco


envolve os portais


dos casarões adormecidos


caída de algum cometa


a paz ausculta os meninos,


 


imersos em brandos sonhos


guardados pelo destino.


 


Oh, silêncio que inebria


ouçamos a canção do ir e vir


que o vento ao longe anuncia,


 


despencando pelas encostas


em vendavais de calmaria.


 


De onde a música?


 


Havia sorriso e luz


nas tardes brancas de outono


em que os meninos soltos


olvidando quaisquer conselhos


burlavam a vigilância das horas.


 


O mundo não era ainda


esse labirinto de espantos


e acrobatas por instinto


saltávamos o muro do encanto.


 


Hoje há essa encruzilhada


cravada no peito da noite


de onde virá a música


soando feito pranto...


 


 


Estirpe*


    I


 Não olvidarei Freud


tampouco edificarei paradigmas


baseado em teorias


meu sofrimento, autodidata,


abriga em suas casamatas


o dom da solidão assumida.


 


E nas silentes horas,


quando a fé não parida


aborta o sentido da vida,


prostro-me exangue


dúbio entre o pasmo e o riso.


 


Qual a estirpe da dor?


O que nos separa do abismo?


 


Verto lágrimas por ofício


e manuseio sonhos


qual cego frente ao espelho


                           despido.


 


Minha fé tem fronteira


Minha estirpe é indefinida...


 


     II


 Anelas a perfeição


com suas puídas vestes


ou o indelével encanto


do fremir das folhas aos ventos leves?


 


Antes que, decrépito,


pervague entre a fonte e o deserto


proponho-te um armistício, ó tempo,


dédalo dos céticos.


 


Permita-me vislumbrar a noite


que despencando dos outeiros


abraça, célere, os faustos gritos dos pequenos


em debandada pelos vilarejos.


 


Ali, em relicário, bem guardados,


encontrarás minha estirpe e seus segredos.


                  Este poema foi inserido na Antologia do Mapa Cultural Paulista       


 


                   


 


 Pai


     (in memorian)


  


Seu sorriso era lindo


água de cachoeira


deslizando límpida


entre pedras e limo.


 


Sua alegria era infinda


e nem os dissabores


de sua árdua vida


(a infância pelo trabalho fora tolhida)


a arrefecia.


 


Genuína era a sua poesia


lapidada com a rusticidade


de mãos e alma caipiras


(às vezes fugia-lhe a rima).


 


Ah, velho amigo,


tivesse eu a consciência


de que seu abraço


um dia me faltaria...


 


Epitáfio


 


Aqui jazz


        além blues.


 


Semibreve, breve


              afinal a pausa?


 


Enfim só


             soul


                 ao sabor das vagas...


 


Beirais


 


    I


 De onde essa dor


que não se mostra


 


recôndita detrás


de invisíveis portas?


 


De onde esse voo


alçado sobre destroços


 


a ausência de beirais


ao pássaro acaso importa...


 


   II


 Sob rútilo amanhecer


sobeja vivacidade


e as certezas são vagas


no redil dos incautos.


 


De onde esse voo


displicente e inefável


que prefere a turbulência


a beiral seguro e calmo?


 


    III


 


O relógio dissolve idílios


e com a sutileza dos sábios


                   urde insídias. 


Por que a idiossincrasia


de postar-se à frente


                 na batalha


reivindicando medalhas,


                  guarida?


 


E no lusco-fusco que se anuncia


sentinela a observar o mar agitado


perscruto: haverá beirais


para um eventual pouso forçado...


 


Bailarina


 


O que encanta é a fluidez


                  dos movimentos


e a fidelidade com que entregas ao ato


de qual pluma flutuares


descurando a gravidade.


 


Elo entre o real e o mágico


burla os desavisados


a tua aparente fragilidade.


 


E sob a égide dos deuses


num desafio ao improvável


unem-se corpo e espaço.


 


Efígie de um anjo sem asas.


 


Se quisesses andarias por sobre as águas


(penso, enquanto espectador extasiado).